telmacesarpor Telma César

Há cerca de vinte e cinco anos venho estudando o coco alagoano e cada vez me fascina mais ver a riqueza de sua dinâmica ao longo do tempo. Das referências históricas à vivência em sua contemporaneidade  pulsante, realmente é incrível percebê-lo como uma inesgotável fonte de inventividade e o seu poder de transformação. Já em 1951, o folclorista alagoano Aloísio Vilela afirmou que “ninguém pode prever de maneira alguma que mudanças  ocorrerão ainda nas modalidades de sua evolução”.

Reunindo música, poesia e dança, o coco apresenta-se vinculado a um só tempo às ações de trabalho, à festa, à criatividade e à manifestação artística, coadunando diferentes funções sociais. Sua relação com as ações de trabalho aparece na versão originária, apresentada por Aloísio Vilela, de que a dança teria surgido da atividade de quebra das castanhas de coco

realizada nas reuniões de negros quilombolas em Palmares. É marcante também a evolução do coco quando este se interpõe ao processo de construção de casas de pau-a-pique. Muito provavelmente o movimento do gogó do pinto, por exemplo, tenha advindo da forma como os homens se apoiavam uns aos outros, por meio dos antebraços, para não escorregarem enquanto pisoteavam o barro molhado para o tamponamento da taipa.

Esse contexto da construção de casas irá gerar grande inventividade nas formas de sapatear presentes na dança, fazendo surgir diferentes ritmos e levando a uma organização corporal eficiente e eficaz, para a durabilidade da ação de pisar de forma saudável para o corpo e para a produção sonora – os joelhos fl exionam e a coluna se inclina levemente para frente.

Mestre Verdelinho dizia que, por ocasião das tapagens de casa de pau-a-pique, os dançarinos competiam entre si para ver quem conseguia manter por mais tempo a pisada, isto é, o “trupé”, nome dado ao sapateado do coco (uma corruptela de tropel, referente às passadas de cavalo). Além do domínio do repertório, eles também exercitavam a improvisação sobre as células rítmicas, padrões dos trupés que eram vários e com diferentes nomes: cavalo manco, sete e meio, xipapá, quarenta, quarenta arrebatido, trupé repartido, miudinho.

Assim como há riqueza nas variações ritmicas do sapateado, também é grande a riqueza poética do coco alagoano. Traços que lhe conferem diferenciais em relação aos cocos encontrados nos demais estados do Nordeste. Contudo, na bibliografia sobre o tema, não encontramos referências sobre as relações entre as formas de estruturação da poesia cantada e os aspectos coreográficos do coco alagoano.

Rocha descreve cinco formas de organização coreográfica do coco alagoano: “coco de roda”, em que um ou dois casais destacam-se ao centro da roda sapateando e, em seguida, escolhem um outro par na roda para substituí-los. Essa troca é feita através da umbigada entre os casais; “coco de visita”, assim chamado porque os pares na roda “visitam” outros pares trocando de lugar enquanto sapateiam; “coco solto” é uma variante do “coco de visita”, sendo que os casais, ao se visitarem, dão a umbigada; “coco de parelhas trocadas”, nesta forma os cavalheiros mudam de damas ao sinal do cantador – “cavalheiro troca de dama” – dando umbigadas a cada nova mudança; “coco de parelhas ligadas”, “...onde os pares se enlaçam sem ficar frente a frente, mas ligados, apenas segurando o braço e a  ‘cadeira’  [quadril]  do parceiro”  (ROCHA, 1980, p.222-223).

Muitos outros modos de se dançar o coco são vistos atualmente, a exemplo do coco dançado em fileiras, como o que foi apresentado pelo grupo de Mestra Hilda ao dançar a música  “araúna”.

A maior parte das formas descritas por este autor encontra-se atualmente em desuso. É o caso do “coco de roda”,  uma das mais antigas. Curiosamente, hoje em dia, a expressão “coco de roda” designa, de modo genérico, a dança e não mais um modo específico de dançá-la.  Outra variação nos modos de dançar o coco, presente no processo de construção das casas de pau-a-pique, é a “roda de valsar”, uma movimentação mais suave em que os pés se arrastam levemente pelo chão. 

Essas rodas se intercalavam ao sapateado como uma forma de compensação de esforço, um momento de descanso, tornando a dança prazerosamente duradoura ao longo da festa que integrava a construção e que costumava durar toda a noite nas comunidades rurais.

Para a construção de uma casa desse tipo era necessária a presença de um grande número de pessoas. Assim sendo, o dono do empreendimento convocava os vizinhos, parentes e amigos a participarem da empreitada. Na etapa final da construção, quando faltava apenas nivelar o assoalho da casa, que era de barro, ele oferecia uma festa onde seria feita a finalização da obra e se comemoraria sua concretização. Uma ação coletiva para a construção de um bem individual!

pisada

Foto meramente ilustrativa, devidamente liberada pelo site www.kilombotenonde.com

Além de sua presença nas tapagens de casa, o coco era dança comum em festividades no meio rural, como por ocasião de um casamento, de um batizado, ou em datas comemorativas como os dias de São João, de São Pedro etc. A partir do aparecimento da sanfona no meio rural, o coco foi paulatinamente perdendo seu espaço nas festas. A adesão dos membros mais jovens das comunidades ao coco foi diminuindo, como também, paulatinamente, foi escasseando a construção de casas de pau-a-pique, este momento de trabalho coletivo que criava uma ambiência favorável à inventividade para a dança e para a poesia cantada.

Desvinculado do contexto da festa, o coco perde seu principal local de repasse de conhecimentos entre as diferentes gerações, condição fundamental para a manutenção dessa tradição. Destituído desta relação de sentidos que a festa lhe atribuía, o coco irá se reconfigurar para o contexto das apresentações atualmente em voga.

Nesse trânsito, da festa para o palco/palanque, alguns elementos se perdem e outros se reelaboram; e novos elementos são introduzidos. Reelaboram-se também os modos de repasse do conhecimento dessa tradição. Por um lado, grupos de pessoas – em sua maioria adultas e idosas – passam a se reunir para a realização de ensaios periódicos e, por outro lado, outros ambientes de práticas do coco aparecem como, por exemplo, a escola. Como modelo do primeiro caso, podemos destacar o grupo Pagode Comigo Ninguém Pode, do bairro da Chã de Bebedouro, em Maceió, liderado pela Mestra Hilda Maria da Silva até 2010,  quando ela faleceu, e também o grupo do Mestre Nelson Rosa, do povoado Fernandes, em Arapiraca. Já no caso das escolas, vale destacar o trabalho desenvolvido pelo já falecido professor Pedro Teixeira de Vasconcelos (1915-2000).

A partir da década de 1960, o Professor Pedro Teixeira iniciou  o seu projeto de levar mestres populares às escolas, para criar grupos de danças e folguedos. Esses grupos realizavam inúmeras apresentações, tanto em Alagoas quanto fora do Estado. Particularmente em relação ao coco, o professor Pedro ficou responsável pela montagem das coreografias e dos ensaios. A partir das exigências desse contexto das apresentações em palcos e palanques, é que foram introduzidos instrumentos como o bumbo e o tarol.

Tradicionalmente, a sonoridade do coco alagoano é caracterizada pelo uso das mãos e dos pés, tendo sido introduzidas posteriormente instrumentos como a bizunga, seguida do ganzá e do pandeiro. Nos grupos de dança coordenados por mestres da tradição, ainda em atuação hoje em dia, vemos a presença apenas do pandeiro e/ou do ganzá.

bizunga

Bizunga confeccionada por Zé Baião

A partir da introdução do bumbo e do tarol, a função percussiva do trupé foi sobrepujada pela função coreográfica. Observa-se também o surgimento de uma grande variedade de desenhos coreográficos e de um figurino comum a todos os integrantes, configurando uma padronização estética na busca pela coerência com o sentido da função de dar-a-ver-se. Verifica-se, ainda nesse período, que nos grupos de estudantes há a utilização de uma única variante de trupé, que se distingue daquelas verificadas nos grupos liderados por mestres da tradição.

Também nos grupos liderados por mestres da tradição, o contexto da apresentação traz a padronização de um figurino comum e a redução dos tipos de trupé. Contudo, este manterá sua função percussiva como um fundamento característico do coco alagoano. Os dançarinos e dançarinas compõem com os músicos a produção musical da dança, não só entoando o coro de vozes em resposta ao cantador solista,  mas também produzindo som com os pés. Aqui, a função percussiva do sapateado se sobrepõe à função coreográfica.

Um outro advento marcante para a história do coco alagoano e seus processos de transformação foi o surgimento dos concursos entre grupos juvenis de coco de roda. Destacam-se os concursos realizados pela UESA – União dos Estudantes Secundaristas de Alagoas – iniciados em 2001 –, e os concursos do “Cheiro da Terra”. Nesse contexto, uma outra relação de sentido se configura na realização da dança: a competitividade. Nesse ambiente, ao mesmo tempo em que vimos surgir um aumento gradual da adesão da juventude a essa dança, vimos também uma avalanche de transformações ocorrendo na musicalidade, no figurino e na coreografia. Tais mudanças muitas vezes são referenciadas nos processos de transformação que vinha ocorrendo com as quadrilhas juninas no contexto de realização de concursos.

Essa instância dos concursos evoluirá para a criação, em 2006, da Liga dos Grupos de Coco de Roda Alagoanos, reunindo de início cerca de 12 grupos de coco e atualmente contando com aproximadamente 30 grupos afiliados. Sem dúvida, um importante passo para o fortalecimento dos grupos, para a regulamentação de uma série de questões pertinentes à organização dos concursos e, por fim, para a eleição de critérios quanto aos processos de transformação do coco.

Será a partir da interferência do músico alagoano Jurandir Bozo que esse processo de constantes mudanças no coco irá se redirecionar. Incomodado com o distanciamento entre as formas do coco apresentadas pelos mestres da tradição e aquelas apresentadas pelos grupos juvenis no ambiente dos concursos, Bozo realiza um trabalho de mediação social importantíssimo para a história do coco alagoano. Ele resgata as formas tradicionais de trupé. Retomo o termo resgate porque foram reavivadas formas já não mais usadas entre os próprios mestres populares. Aquelas que estavam vivas na memória de seus corpos, mas que eles já não as colocavam em prática na realização de suas apresentações. É o caso do trupé xipapá, um tipo de trupé que era usado para dar acabamento ao alisamento do piso das casas de pau-a-pique. Para essa missão, Bozo contou com o auxílio do filho do mestre Verdelinho, Josenildo de Assis, que herdou do pai farto conhecimento acerca das variantes de sapateado do coco alagoano. Assim, foram realizadas oficinas nas quais Josenildo repassava seus conhecimentos aos integrantes dos grupos juvenis. 

A partir do concurso de 2011 foi gradativa e crescente a adesão dos grupos ao repertório de trupés tradicionais do coco alagoano. Considero que o grande valor da ação de Jurandir Bozo consiste no fato de ter mediado a relação dos grupos juvenis com o conhecimento dos mestres populares. Sua ação possibilitou o acesso a um conhecimento até então não disponibilizado para esses jovens. Essa aproximação trouxe uma espécie de empoderamento para os novos grupos, no sentido de verem-se imbuídos da responsabilidade pela continuidade da tradição do coco.

É comum ouvirmos críticas acerca do coco realizado por esses grupos juvenis, em função de as formas coreográficas, musicais e visuais por eles apresentadas serem sobremaneira distintas daquelas apresentadas pelos mestres da tradição. Talvez um olhar distanciado não alcance a dimensão da circularidade da cultura em que elementos estruturais da dança se reconfiguram no tempo, atualizando memórias ainda que carregadas de novos sentidos.

Poderíamos trazer aqui o exemplo da umbigada – movimento em que o umbigo de dois dançantes se encostam –, um dos mais fortes traços da herança negra do coco que, desde a África, era movimento presente nos batuques e integrava os rituais de reprodução e de iniciação, sendo vista pelo invasor português como um gesto obsceno. Talvez o mesmo olhar julgador do colonizador tenha sido lançado sobre o nosso coco pela burguesia alagoana, quando se acredita que o coco tornou-se “moda” nos salões da alta sociedade local no início do século XX. O fato é que, nos cocos realizados pelos mestres da tradição, a umbigada não é efetiva. Nos grupos juvenis, ela reaparece fortemente, contatando os corpos. De forma exagerada? Talvez... Ou poderíamos enxergar esse modo de umbigar dos grupos juvenis como um “retorno”, como uma reafirmação dos valores culturais originários, reconectados com os novos sentidos da contemporaneidade?

Proponho que troquemos o enfoque nas diferenças pelo olhar sobre o que há de comum entre essas duas instâncias de realização do coco alagoano – os grupos juvenis e os mestres da tradição. Se pararmos para observar um pouco mais de perto e com mais sensibilidade, veremos que há uma juventude linda, vibrante, e que trabalha com muita seriedade, amor e afinco. É muito próxima a dimensão de importância que o coco tem na vida desses jovens e na vida dos mestres. É similar a função do grupo como mecanismo de socialização, do exercício de lideranças numa ação de interesse conjunto e comunitário e na conjunção entre lazer e trabalho – se pensarmos tanto no nível de comprometimento como também no que se almeja: o reconhecimento do valor do trabalho realizado e o recebimento de cachês pelas apresentações. Muito próximo também é o lugar social em que ambos se encontram enquanto parcela excluída de uma sociedade de classes em que o fazer artístico da cultura popular tem lugar marcado e pré-reservado.

Se olharmos à nossa volta, veremos que os grupos liderados por mestres da tradição vêm diminuindo rapidamente junto com a morte de seus líderes. Os integrantes desses grupos são, na maioria,  idosos e não vemos renovação de uma geração à outra. Em contraposição, nos grupos juvenis temos uma adesão grande de jovens e uma crescente aproximação de crianças para a prática do coco, conjuntamente com a perseverança de suas lideranças, que vêm se mantendo desde suas formações. Alguns desses grupos já completaram 18 anos de existência em atividade contínua.

Perguntaríamos, então, onde estaria a solução de continuidade da tradição do coco alagoano? É possível pensar em manutenção de uma tradição sem rupturas? A história tem nos mostrado que não.

Nesse sentido, o papel de ações de mediação social como aquelas implementadas por Jurandir Bozo e as então realizadas pelo projeto Rede Sociocriativa do Coco de Roda, do qual faz parte este catálogo, são partes importantes nos processos dinâmicos da cultura popular, uma vez que favorecem a circulação e o acesso ao conhecimento, aproximando gerações, de modo a manter a dialética entre tradição e ruptura, fundamental à sobrevivência de uma manifestação cultural tradicional.

Vida longa ao coco alagoano! Que a roda continue girando, colocando as memórias em movimento por meio daqueles que cantam, dançam e poetizam a realidade!


TELMA CÉSAR CAVALCANTI

É alagoana, professora do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Alagoas, atuando também no Curso de Licenciatura em Dança, do qual foi coordenadora.  Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação (Ufal) e mestre em Artes (Unicamp). Artista da dança e diretora da Cia dos Pés. Desde 1990, vem desenvolvendo estudos sobre o coco alagoano com

aplicações no campo da criação artística e da pedagogia da dança. No segmento musical, atuou como compositora, cantora  e percussionista da banda Comadre Florzinha, em shows e CD de Antônio Nóbrega e em projetos como Sonora Brasil, com o Grupo A Parte, e MPB-BPM (Música Popular Brasileira – British Popular Music), que reuniu artistas do Brasil e Reino Unido.

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BIBLIOGRAFIAS SUGERIDAS

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